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Movimentos LGBT: Crítica e Análise

In blog on abril 18, 2010 at 10:43

Cerca de dois séculos se passaram desde o surgimento do que Michel Foucault chama de “dispositivo da sexualidade”. A partir de então, diz o filósofo, os indivíduos passaram a ser qualificados e taxados por normas pedagógicas, médicas, jurídicas, científicas e morais, criadas a partir de um paradigma heterossexual. Dessa forma, o sexo extraconjugal e estéril passa a ser classificado não mais como uma subversão contra legem (infratora da aliança do casamento), mas como uma anomalia, ou seja, um desvio do padrão considerado saudável. Estava, então, estipulado o limite entre o normal e patológico, que guiaria toda a atuação da disciplina sobre os corpos. Os doentes deviam, desse modo, ser tratados e conduzidos em direção à normalidade pelas instâncias do poder disciplinar.

Nesse sentido, a sexualidade se tornava principal fator de subjetivação do indivíduo. O processo de constituição do sujeito passava a ser, assim, determinado por ela. Exemplo disso é a diferença do tratamento direcionado às práticas homossexuais antes e depois da origem do dispositivo. Anteriormente ao século XIX, a sodomia (termo dado pela época às relações homoafetivas) era tão-somente uma infração tipificada pelo antigo direito canônico ou civil, isto é, um crime em que o autor se posicionava como mero agente (um simples sujeito jurídico). No século XIX, entretanto, surge a figura moderna do homossexual. Para Foucault, o homossexual “torna-se uma personagem, uma história, uma infância, um caráter, uma forma de vida; também é morfologia, como uma anatomia discreta e, talvez, uma fisiologia misteriosa. Nada daquilo que ele é, no fim das contas, escapa à sua sexualidade. Ela está presente nele todo: subjacente a todas as suas condutas, (…) inscrita sem pudor na sua face, já que é um segredo que se trai sempre. É-lhe consubstancial, não como pecado habitual, mas como natureza singular”. Desse modo, conclui-se que enquanto o sodomita era um reincidente, o homossexual passa a ser uma espécie anormal. O indivíduo se constituía, com isso, a partir de sua sexualidade, inscrita e marcada em uma suposta “essência”.

Entrecruzadas a esses procedimentos de subjetivação, estão as chamadas práticas discursivas, surgidas e instituídas por meio de um fenômeno nomeado por Foucault de explosão ou proliferação dos discursos. De fato, o francês esclarece que a colocação do sexo em discurso não foi restringida, mas pelo contrário, incitada. As técnicas de poder e a vontade de saber, na verdade, empenharam-se no conhecimento das sexualidades polimorfas e no estabelecimento de uma ciência da sexualidade. As instituições passaram a estimular que o sexo fosse dito, explicita e detalhadamente. Nada mais conveniente para os mecanismos institucionais, uma vez que as definições dos padrões de normalidade só poderiam ser conhecidas se o sexo fosse estudado a fundo, interrogando os indivíduos a respeito de seus mais íntimos segredos – herança evidente da pastoral cristã e seus ritos de confissão. Além disso, o confessar participa de uma sistemática de reconhecimento subjetiva. Isto porque o indivíduo, ao confessar sua sexualidade, pensa-se enquanto sujeito, ou seja, torna-se um sujeito que se reconhece ao admitir sua “natureza”. Logo, a subjetivação do indivíduo pela sexualidade também perpassa as práticas de confissão.

É dentro deste contexto teórico que a atuação dos movimentos de defesa da comunidade LGBT pode se revelar problemática. Logicamente, é indiscutível que eles representam um importante papel social, posicionando-se, quase sempre, contrários à discriminação e à exclusão impingida aos homossexuais. Contudo, a institucionalização desses grupos em um corpo quase partidário faz com que seus membros colaborem para um efeito discursivo presente no pensamento de Foucault: a subjetivação pelo auto-reconhecimento. Quando alguém se ”filia” a uma organização dessa natureza, constitui-se sujeito a partir de sua sexualidade, ou seja, ”confessa” que é “homossexual”, sendo este fato o principal fator constitutivo de sua personalidade. Algo, convenhamos, muito conveniente às redes de poder, que se empenham na classificação e especificação dos indivíduos. O sujeito se torna uma espécie desviante do paradigma normativo. Aliás, outro ponto controverso relacionado ao movimento gay está justamente ligado a esse “paradigma normativo”. Os grupos de defesa dos homossexuais reivindicam, necessariamente, direitos civis de inspiração heteronormativa, como o casamento e a adoção de crianças. Essas reivindicações transparecem uma busca por um tipo de adequação ao padrão normal social heterossexual.

Tal empenho colabora com os procedimentos de docilização dos corpos e ”normalização das aberrações” que há séculos vêm sendo formulados e aplicados pelas instâncias do poder disciplinar. Como conseqüência, essa incessante luta por uma assimilação da heteronormatividade, torna os gays marionetes de uma campanha que apresenta interesses ocultos das parcelas privilegiadas da sociedade, e que não afasta o modelo de supremacia masculina heterossexual arraigado. Desse modo, os homossexuais são ”assimilados”, mas continuam sendo valorados de forma inferior àqueles que seguem o padrão normalizador (heterossexismo). Assim, em última instância, a campanha pelos direitos LGBT termina cooptada e controlada por setores de dominação como a mídia.

Além disso é notório uma forte questão mercadológica envolvendo o LGBT, como se a  partir da sexualidade todo um comércio se abrisse. Os homossexuais passam a ser vistos como consumidores de produtos, bens e serviços de lazer e entretenimento, conceituado teoricamente um novo  e lucrativo nicho de mercado.  Para citar um exemplo desse processo, pacotes e eventos ditos GLS,  aumentaram as vendas em 40% no setor de  Turismo no Brasil, sem contar boates e restaurantes destinados apenas ao público homoafetivo.  Tal “segmento” é visto por vários especialistas como o nicho de maior  potencial comercial da atualidade. Assim,  o movimento LGBT deixa de ser algo político para ser visto apenas como mais um segmento mercadológico, aquietando seu potencial de luta efetiva .

Não se quer dizer com tudo isso, absolutamente, que os homossexuais não devam reivindicar pelos seus direitos. Pelo contrário, isso deve ser feito. Porém, cabe pensar que nem todos os movimentos o fazem de maneira realmente subversiva. Lutar por igualdade sexual passa por fatores bem mais complexos do que a mera assimilação. O erro dos grupos de defesa da comunidade LGBT está, justamente, na crença de que os gays se adequarão ao modo de vida machista e heterossexual predominante na nossa sociedade. Com esse pensamento, o homossexual se rende ao rótulo de parte dominada e anômala dado pela disciplina àqueles que se desviem do paradigma. O indivíduo confessa, produz um discurso, torna-se sujeito pertencente a uma espécie e, a partir disso, é docilizado, domesticado para que depois seja ‘normalizado’ e disciplinado (práticas subjetivadoras e discursivas). Desse modo, o homossexual é assimilado. O movimento LGBT deve ser, antes de mais nada, uma resistência à violência e à marginalização imposta aos homossexuais por uma estrutura hierárquica e patrilinear. Mas há maneira de um grupo escapar dos efeitos do poder impostos pela disciplina? Para nós é evidentemente que sim. Agrupamentos horizontalmente, sem uma estrutura hierárquica forte, aliada a uma ausência de um critério de aceitação/composição (ainda que imposto de forma implícita), esquivam-se das redes de dominação. Neste sentido, dizer-se homossexual dentro de um conjunto sem líderes e ao mesmo composto por qualquer indivíduo de natureza subversiva; não sendo seqüestrado, dessa forma, por qualquer setor da sociedade com interesses financeiros, políticos e/ou midiáticos; deixa de ser um processo de subjetivação conveniente aos mecanismos institucionais, para ser uma resistência às práticas disciplinares