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verbete #6: [arte como ideologia]

In vocabulário de palavras em desuso on junho 8, 2010 at 21:52

Esse texto pretende relacionar arte, poder e ideologia partindo da constatação de que cada época deu um valor e uma conceitualização ao termo “Arte”. Se tal problema é abordado de uma maneira histórica e não metafísica, veremos que é só a partir de um período histórico que a Arte, semelhante a como conhecemos hoje, começa a exercer um enorme poder simbólico, servindo grande parte das vezes apenas como um instrumento das classes dominantes para a manutenção de seu status quo. Não se trata aqui de tentar retirar as potências e o valor de uma experiência estética, mas justamente estabelecer uma cisão entre o conceito de Arte e os objetos/eventos estéticos.
A fraude contida no conceito moderno de Arte começa em como ela foi tomada, como uma atividade universal e indissociável da condição humana. Parece incongruente que pinturas rupestres e manifestações de povos antigos sejam expostas e definidas por nossa sociedade ocidental como Arte. Tal afirmação demonstra que não é levado em consideração que tal atividade está inserida em um contexto muito especifico, são importantes rituais de fundo místico e social. Além disso, os objetos criados a partir desses rituais não ficavam expostos para a apreciação do público, não existindo uma separação de quem os cria daqueles que os observa. Essa experiência não estava separada da vida cotidiana.
Então, por qual razão nos nossos livros de História do colégio estão repletos de capítulos, fotos e escritos dedicados à chamada Arte dos ditos “povos primitivos”? Para responder a isso será necessário adentrar nas redes de poder presentes no cotidiano, já que a maioria meios de formação do indivíduo (principalmente a escola) existe para induzir habilidades e interesses que dependem muito dos valores, crenças e do caráter da vida “cultural” de uma sociedade. Nosso gosto passa a ser moldado pelo meio social em que vivemos e é através desse meio que se começa a instituir para o sujeito que tipo de Arte será valorizada. Mesmo as pessoas que afirmam não gostar ou entender de Arte costumam demonstrar interesse por música (emissoras de rádio e majors), cinema (blockbusters), arte dramática (novelas), dança (boates e danceterias), ficção (romances e best-sellers), mas tais interesses não são abarcadas pelo escopo do que seria considerado realmente Arte. Isso acontece pois a Arte se apresentaria como uma subcategoria dessas categorias mais genéricas, ou seja, a Arte não seria: cinema, pintura, teatro, música, etc., sendo considerada como algo superior e além. Parece óbvio que no exemplo citado ocorre uma clara diferenciação das percepções de valor. Se alguém diz que o livro que acabou de ler é uma obra de Arte, na verdade, está dizendo é que o livro lido tem mais valor que os outros, dos quais a classificação de Arte foi retirada.
Somente a partir do século XVII, com as mudanças sociais vigentes, é que começam a aparecer definições de Arte que se assemelham àquelas perpetuadas ainda hoje no senso-comum. Tais  definições aparecem socialmente localizadas na Europa, por uma burguesia incipiente que começava a invadir o espaço da aristocracia e a tomar valores dessa para si.
O conceito Arte como conhecemos hoje emerge na era industrializada, embora as produções culturais “de valor” tenham surgido anteriormente em um conceito aristocrata. A Arte seria uma invenção dessa aristocracia, mas ela não chegou a elaboração de uma  teorização e uma categorização. A burguesia não inventou a Arte, mas reinventou o conceito que gerou todo um novo vocabulário e um valor para se referir à Arte. É muito claro para os românticos que o artista era o depositário oficial da criatividade humana e da consciência. Apenas o artista possuía as paixões que a necessidade espiritual, um dia, forçaria a sociedade como um todo a adotar. Esse novo objetivo da Arte retrataria e glorificaria essa antiga ordem sócio-econômica que a burguesia havia ameaçado destruir por completo. Após as revoluções em que haviam conquistado seu posto privilegiado como classe dominantes os burgueses viam essa radicalidade como algo que poderia ser abandonada. Desse momento em diante, o desenvolvimento da Arte fica amarrado ao desenvolvimento da classe burguesa.
É possível observar mudanças concretas na Arte Moderna como, por exemplo, a reclassificação da literatura e da pintura como Arte, ao contrário do que ocorria até o século XVI. Ainda hoje o conceito de “Arte” vem sendo alargado para receber novas (e rentáveis) formas estéticas. Mesmo assim, é interessante notar que o valor metafísico atribuído à Arte ainda não desapareceu, funcionando de modo semelhante ao das religiões, já que, assim como o objeto religioso necessita da fé para tornar-se sacro, também um objeto “artístisco” necessita de uma crença estética para que seja visto como arte.

Tendo adotado uma perspectiva materialista e antiessencialista da Arte, é preciso atentar-se sobre os dois únicos pontos em comum que agruparia objetos sobre a categorização de Arte: serem tratadas e recebidas como tal. Em outras palavras, obras de Arte são qualquer coisa que aqueles em posição de poder cultural afirmem que seja Arte. Este poder está representado pelas instituições de Arte, críticos, estetas, teóricos e todo um sistema de poder que os legitima, são mantidos por essa validação e trabalham juntos para definir o que é tratado como Arte e, principalmente, o que não é (ou o que não é considerada “Alta Arte”).  A Arte seria definida a partir da circunscrição de suas condições de produção e apresentação, aquilo que no teatro, por exemplo, atores, diretores e dramaturgos apresentam é Arte, e é Arte porque é apresentado no quadro do mundo do teatro, uma argumentação propositadamente circular. O produto artístico é elaborado e recebido pelo “mundo da Arte”, no qual somente especialistas (essas redes de legitimação já citadas) e um grupo de iniciados tem acesso.
A chamada cultura popular perde sua amplitude e a capacidade de manifestação, já que a camada dominante acaba por desmerecer e diminuir as manifestações culturais, estéticas e criativas das classes populares. Se cultura é só o que está nos museus, teatros e outros espaços especializados, rapidamente decorre-se que as classes populares não possuem cultura. Portanto, a Arte passa a ser antes de tudo um fator de coesão social, mas também de produção de capital tanto monetário como simbólico. Números aproximados revelam que o mercado de Arte movimenta cerca de US$ 30 a 40 bilhões ao ano, sendo um dos maiores setores de geração de recursos. Portanto, a questão de um poder econômico relacionado ao que é produzido, consumido e legitimado como Arte não pode ser desconsiderado.
O conhecimento do mundo da Arte está intimamente relacionado à hierarquia social e não possuir tal conhecimento significa ser excluído dos grupos que detêm poder e status. Assim a Arte não passaria de um grande jogo para vender um estilo de vida como algo superior e elevado, então parece óbvio por qual razão  ela se apresenta como a mercadoria ideal. Não é estranho que se queira oferece-la a todos com tanto empenho…

Panfleto: Sobre a luta anticapitalista

In blog on janeiro 12, 2010 at 16:47

A@s descontentes com a realidade;

Há um pouco mais de 10 anos os Dias de Ação Global foram inaugurados quando, atendendo aos chamados da Ação Global dos Povos, ativistas de diversas partes do mundo coordenavam protestos simultâneos em contraposição aos encontros dos gestores do capitalismo mundial (FMI, Banco Mundial, OMC, BID, etc.).


O mais famoso protesto desses dias foi o N30, esse sim de 10 anos atrás, também conhecido como a “Batalha de Seattle”. Cerca de 50 mil ativistas (entre sindicalistas, ecologistas radicais e anarquistas) simplesmente abortaram a chamada “rodada do milênio” da OMC (Organização Mundial do Comércio) que queria iniciar os anos 2000 negociando uma maior abertura do comércio mundial. Festas de rua, barricadas flamejantes, enfrentamento policial e as inovadoras táticas de comunicação via internet/celulares entre @s ativistas fizeram desse um dia vitorioso para o movimento anticapitalista mundial.

Este, porém, não foi o primeiro Dia de Ação Global (já havia acontecido o J18 em Londres e ainda em 1998 os protestos em Genebra), muito menos foi o último (tantos outros nos anos seguintes como o S26, A20, o G8 em Gênova, dentre outros). Tampouco as idéias, posturas e táticas ali utilizadas nasceram dentro desses Dias (@s autonomistas vinham agitando a Itália desde os anos 70 com suas greves selvagens e sabotagens, e os squatters alemães já usavam a tática Black Bloc nos anos 80) ou se acabaram com eles (a rebelião de Oaxaca em 2006 e a Grécia em chamas de 2008 comprovam isso).


No entanto nós, autônom@s, anticapitalistas, libertári@s, vivemos um momento agora em nossa realidade onde a paralisia é geral. E não adianta procurar justificativas que não existem. O mundo ainda continua sobre ataque constante do Capital e dos Estados, assassínios políticos diversos, super-exploração humana e animal e a destruição cada vez maior do nosso ecossistema em nome do lucro. E claro, a resistência não diminuiu, gritam @s squatters lutando pelos seus direitos na Holanda, @s manifestantes contra a COP15 na Dinamarca, as manifestações na Grécia e a juventude do “Fora Arruda” em Brasília.

O que parece ser notável é a grande miséria que se encontra no meio hardcore/punk, fato que fica visível justamente por ocorrer em um meio que se diz politizado e ativo, mas que atualmente limita todo seu potencial servindo apenas para organizar shows e reproduzir ainda mais o espetáculo da separação entre aqueles que atuam e aqueles que assistem. Não se trata aqui de dizer que o punk, o hardcore, o straight-edge, etc. são inúteis, mas que são ideologias e devem ser superadas para que continuem tendo poder crítico. Devemos descartar o que tem de mais superficial e aproveitar tudo aquilo que deve ser aproveitado.

Também não poderiamos esquecer da velha esquerda, patética e retrograda em seus valores, esperando eternamente que a revolução aconteça enquanto tiram o pó de velhas teorias sentados em suas reuniões burocraticas. Quase sempre estão mais preocupados em “catequizar” as pessoas,  além da notável falta de humor e desejo em seus discursos já empoeirados. A luta contra os poderes coercitivos é diária e deve negar heróis, vanguardas e o tédio.

O que faremos então? Existem duas opções, nos deixarmos levar pela maré da história, ou organizamos um motim, tomarmos o barco e içarmos a bandeira preta, antes de afundá-lo.

A barricada só tem dois lados. Ou se está do lado de quem quer manter a ordem, ou do lado de quem a quer derrubar. Escolha o seu e mobilize-se AGORA!

Amig@s da Próxima Insurreição e [conjunto vazio]

verbete #4: [utopia]

In vocabulário de palavras em desuso on janeiro 10, 2010 at 15:28

É comum compreendermos o “niilismo” como um conceito voltado contra a religião. Mas, de um modo geral, chamamos alguém de niilista quando ela deixa de acreditar em valores transcendentes como critérios orientadores da sua vida, independente se é um deus ou não. A despeito de todas as modificações ou de provas que podem constranger as suas crenças, uma posição não-niilista também insiste no seu engajamento. Então, ao invés de modificar a sua posição por causa dos fatos, a interpretação dos fatos se adequa, de um modo ou de outro, às suas posições. “Utopia” comumente não tem qualquer significado para um niilista, porque uma utopia implica em transcendência, ou seja, implica em orientar a realidade atual tendo em vista uma outra realidade. Não é incorreto tomar também o melancólico por utópico. A lembrança do objeto perdido ou de um estado de plenitude orienta a relação do melancólico com a realidade. Mas, sem dúvida, o mais comum é o olhar do utópico estar voltado ao futuro. A utopia é um mundo por vir. Em última instância, é a redenção do mundo atual.

Batman, Hamlet ou Bloom?

Muitos engodos surgem dessa noção. A promessa de um futuro pleno tem sido uma das estratégias para dissuadir as pessoas a conquistarem agora aquilo que elas podem. Trata-se de convence-las de que não estão preparadas para aquilo que desejam e, assim, a se resignarem ao estado atual de coisas como o melhor modo de alcançar o que desejam. O mundo atual não é amado e o mundo desejado se perde em um futuro longínquo, simultaneamente. A conservação do estado atual de coisas se faz através de um jogo de aproximação e distância com aquilo que é desejado, o importante porém é que a posse seja sempre impossível. É realmente problemático quando as pessoas se sentem plenas nos seus engajamentos. A cada vez que surgir um sentimento de posse e de plenitude, deve-se pensar-se como culpado, como um “eu não tenho direito”.

Independente se esssa cisão no coração do desejo é constitutiva ou não, o mais importante é observarmos o modo como o estado atual de coisas hoje organiza e administra essa cisão. Por um lado, há uma descrença universal em todo tipo de valor transcendente. Somos todos cínicos com toda crença, lei ou engajamento/voluntarismo. Nenhum deus tem a onipotência de antes. De fato, nós somos todos niilistas. Esperamos ser pessoas versáteis que sabem se adaptar a qualquer situação, que sabem transitar de uma crença para outra. Mas, por outro lado, isso não significou uma relação plena com o mundo. Ao invés do amor fatti, há uma insatisfação generalizada. Não é por outro motivo que acreditamos em qualquer coisa que nos oferecem para suturar o buraco dentro de nós. Não há outro significado para o new age, os livros de auto-ajuda, etc. Algo como o personagem principal do filme Clube da Luta que se esforça para tapar o seu vazio com artigos de decoração e reuniões de grupos de auto-ajuda. Por isso (é uma hipótese) deva-se repensar se ao contrário dessa flexibilização total de nós mesmos ser uma liberação em todos os níveis da vida (desejo, trabalho, tempo livre, linguagem, etc), será que ela não foi um modo de moldar as nossas economias subjetivas para satisfazer uma necessidade de um fluxo mais acelerado de mercadorias? Porque é realmente preciso destruir todas as territorializações rígidas (Estados, religiões, culturas tradicionais,  etc.) para existir um capitalismo universal. Foi necessário também livrar-nos das nossas utopias, das nossas crenças em um “para-além” e instituir uma precariedade essencial em todos os sonhos. A contrapartida do esclarecimento ou da desilusão frente às utopias é um certo “realismo capitalista” onde toda tentativa de solucionar um problema não vai além das soluções que reproduzem o atual estado de coisas. Como se nossa condição fosse tão ideológica ao ponto de equacionar o pensar racional com o pensar a favor do status quo. O problema consiste então em recusar a banalidade ou o gratuito e, ao mesmo tempo, não fazer retornar uma territorialidade que só artificialmente poderia ser a nossa. É a atual condição de crença e engajamento/voluntarismo (ainda que com todo o peso e ranço que essas palavras carreguem).

quem tem medo de “teoria”?

In blog on dezembro 31, 2009 at 17:50

Há um certo anti-intelectualismo que não conhece as suas próprias origens e que trafega entre vários grupos como uma espécie de “senso comum normativo”, ou seja, não fundamentado ou elaborado, mas perfeitamente funcional na sua tarefa de expulsar o pensamento. O que não se percebe é que a teoria pode ter também uma eficácia de outro tipo que aquela de marcar com um nome práticas que de forma alguma reclamam isso (Mano Brown diz que: “Somos reféns das palavras, mas não posso ser refém de nada, nem do rap. Vamos quebrar. Aquele Mano Brown virou sistema viciado, uma estátua óbvia demais. Pergunta tal coisa que ele vai responder tal coisa. Eu estava mapeado e rastreado”). Uma intervenção teórica pode ser útil para desarticular uma apropriação ideológica de práticas sociais. Então quando um levante de favelados ocorre em uma metróple por causa da violência policial é preciso uma contrapartida para a legitimação da repressão. É preciso uma resposta contra aqueles que tomam o movimento como selvageria, barbárie ou uma mera vingança. Uma intervenção teórica pode fazer compreender que se trata de um movimento político antes de tudo. Fora de cogitação dar um lugar normativo ou legitimador para uma teoria estética ou política. Ao contrário, há um valor estratégico nas teorias.

Quando as idéias voltam a ser perigosas

In blog on dezembro 27, 2009 at 15:22

cena do filme "Reds" de Warren Beatty

“O que queremos, de fato, é que as idéias voltem a ser perigosas.”
Internacional  Situacionista

Foi durante a filmagem de Reds, filme sobre o jornalista John Reed que acompanhou a revolução comunista na Rússia,  que  o diretor Warren Beatty com o intuito de ter atuações mais verossímeis e “reais” dos figurantes nos papeis dos trabalhadores russos explorados, ensinou a eles  as formas  como esses  resistiam, lutavam e sobre como funcionava o modo de produção capitalista.

Beatty, certa vez, discursava antes  de uma filmagem para a figuração sobre a revolução, a igualdade, a política, o comunismo, dentre vários outros assuntos, ao terminar sua fala não tardou para os figurantes entrassem em greve em busca de melhores salários, montando piquetes e impedindo o filme de continuar as gravações.

Poderíamos dizer que o diretor forneceu as ferramentas necessárias para que os figurantes tomassem consciência de sua exploração, permitindo que  eles tentassem deixar de ser meros espectadores/figurantes de suas próprias vidas ou  podemos simplesmente dizer que pregações políticas são entediantes e que os figurantes entenderam que já há teorias demais no mundo…

É hora de fatos e ato.

ideologia, shopping center e billy wilder

In blog on dezembro 24, 2009 at 00:53

Um filme sobre cinema, Crepúsculo dos Deuses de Billy Wilder conta a história de Norma Desmond uma atriz aposentada que não conseguiu sustentar sua fama depois das modificações cinematográficas que tiveram como consequência o estabelecimento do cinema falado. Então, ela vive em uma caríssima e decadente mansão junto com o mordomo e um macaco que, nos primeiros instantes do filme, é substituído por um roteirista falido de Hollywood. O interessante do filme é que, a despeito da sua decadência real, Norma sustenta para si mesma que ela continua amada pelos fãs que, segundo sua imaginação, estariam esperando ansiosamente o seu retorno para as telas. Para assegurar a ilusão, o mordomo está disposto a qualquer coisa como, por exemplo, forjar cartas de fãs que nunca existiram. O real se insinua em todos os cantos, mas Norma vê o que quer vê.

Bela metáfora sobre a ideologia. Bela metáfora sobre a nossa época. Nada melhor do que o shopping center para comprová-lo. O shopping é a abolição do tempo, um lugar que materializa a ausência de história. Quem nunca sentiu a sensação de “não ver o tempo passar”, enquanto fazia compras? Isso porque entrar em um shopping é uma espécie de experiência de imersão. Ele não é outra coisa senão um “útero arquitetônico”. Ele realiza a nossa fábula de mundo perfeito e seguro. Mundo sem conflito ou contradições. É possível dizer que ele é a realização do ideal urbanístico de limpeza e higiene a todo custo. Afinal, não é disso que se trata quando os projetos urbanísticos levam para longe a pobreza, ou seja, não se trata de transformar as ruas, tal qual os corredores de um shopping, em uma passarela de mercadorias?

verbete #1: [ideologia]

In vocabulário de palavras em desuso on novembro 11, 2009 at 23:19

O filme Corporation mostra uma cena em que manifestantes invadem a residência de um poderoso empresário na expectativa de, após algum enfrentamento, as suas exigências fossem aceitas. Esperava-se que o FBI interviesse, que houvessem presos e confusão. Ao contrário, o empresário e sua esposa são dois simpáticos velhinhos que recebem os manifestantes com chá e biscoitos mantendo com eles uma agradável conversa onde eles revelam a sincera preocupação com as questões ambientais do nosso planeta. O problema é maior do que simples hipocrisia. Como é possível um poder absolutamente transparente, que não esconde os seus pressupostos, mas que os revela cinicamente?

Uma das táticas peculiares dos protestos anti-globalização consistia em confrontar a polícia com indivíduos fantasiados. Ao invés dos black blocs (indivíduos com roupas pretas armados com coquetel molotov), os policiais entravam em confronto com fadinhas e palhaços. O efeito claro era de desterritorialização; amenizar, pela confusão que o inusitado provoca, a violência policial.

De certo modo, é um efeito desse tipo que ocorre quando o espectador é convidado a assistir a crítica mais radical de sua condição. “Desligue a tv e vá ler um livro”. Mesmo que o espectador obedeça a essa ordem, no momento em que ele fizer isso, ele revela a sua adesão à emissora que o ordena. Ao expor a sua própria crítica dentro das condições que deveriam ser criticadas, os aparatos de poder esterilizam toda crítica.

É porque vivemos em uma época na qual o poder se exerce transparentemente que se acredita que a palavra IDEOLOGIA não faz sentido. É como em um filme pornográfico: parece que os críticos do nosso sistema social não tem nada a revelar, porque tudo já está obscenamente exposto e isso não muda nada. Até então, a crítica à ideologia significava trazer à luz do dia o que os discursos que legitimavam determinadas práticas sociais ocultavam no intuito de desestabilizar o fundamento desses discursos e práticas. Tratava-se para os críticos de um trabalho de arqueólogo: revelar o fundamento enterrado nas profundezas e instaurar algo que faz juz a essa verdade.

Podemos ler a crise da esquerda por esse viés. Mesmo as suas correntes mais radicais são impotentes em vislumbrar algo após o nosso sistema vigente que não seja morte e catástrofe. Na impotência crítica, aqueles que ocupam o papel de vedetes da negação se apegam a causas que não causam mal a ninguém, que todos concordam de antemão, como, por exemplo, as causas ambientais. Será que ninguém percebe que podemos salvar o planeta sem dar um passo de emancipação humana? Ou seja, mesmo o maior porco capitalista pode reciclar o seu lixo.

Devemos nos confrontar com a seguinte hipótese que coincide com aquela do “fim da história”: o capitalismo realizou tudo. Não há exterioridade ao capitalismo, ele é tudo e o que ele não é ainda, é potencialmente. É o significado do multiculturalismo: todas as crenças, todas as cores, todos os deuses. Como em um shopping onde as diferentes mercadorias se co-habitam pacificamente.

Tudo nos indica que há algo de ilusório nessa realização total. É impossível conciliar todo o universo sem que para isso anulemos algumas das características mais essenciais do seus elementos. A promessa da democracia capitalista é que podemos assumir posições sem que isso provoque qualquer efeito. Mas isso não é o mesmo que não assumir posição alguma?

Um filósofo, uma banda punk ou um publicitário podem ser profundamente radicais nos seus discursos sem que isso implique em absolutamente nada. Se nas ditaduras as palavras são estupidamente carregadas de significado, a condição de possibilidade da democracia parece ser que elas sejam vazias. De fato, as pessoas parecem acreditar em alguma coisa, mas o que elas acreditam não são significados que emergem para aqueles que, incapazes de acreditar, acreditam em qualquer coisa, no que resta?

Antes de tudo a primeira tarefa de uma crítica da ideologia hoje é negar o engodo de que nosso discurso é o mais esclarecido e não envolve posição alguma senão a única posição possível. Supor que um discurso é impermeável a condições de verdade é o primeiro passo para torná-lo incontestável e absoluto. A segunda tarefa é saber o quanto ineficaz é procurar verdades ou essências que explicam os fenômenos ideológicos. De um modo radical, o anti-capitalismo deve assumir uma perspectiva estratégica e criativa.