[conjunto vazio]

verbete #2: [desejo]

In vocabulário de palavras em desuso on dezembro 5, 2009 at 21:01

Para os sixties, frases como “a imaginação no poder” ou “gozar sem entraves” tinham um conteúdo revolucionário. Essas frases eram contestatórias na medida em que se relacionavam a uma cultura fortemente normativa que exigia dos indivíduos a adequação a papéis sociais fixos. Nesse contexto cultural, não havia privilégio algum da individualidade que poderia fazer frente a papéis sociais. As demandas contestatórias quando não giravam em torno do reconhecimento das minorias, ia mais longe na demanda de reconhecimento de uma individualidade irredutível a papéis sociais. Não é por outro motivo que figuras que sustentavam um discurso transgressor passaram, pouco a pouco, a ocupar o lugar das figuras que carregavam os valores tradicionais. Esse período, que corresponde ao pós-68, provocou uma mudança significativa no modo como percebemos a realidade social e no modo como nos engajamos nessa realidade. É como se, a partir desse momento, as pessoas passassem a exigir delas mesmas e dos outros um envolvimento mais afirmativo com o mundo, como se elas passassem a exigir que nada seja escondido, que tudo venha a tona, que, por mais estranhos que nós somos, nós devemos viver juntos e devemos ser felizes. A partir de então, nós temos o direito e o dever da felicidade! O novo imperativo social com o qual devemos nos adequar para assumir um lugar na cultura é “seja você mesmo!”.

Mais do que qualquer outra coisa, isso diz respeito ao desejo. Desejar não significa apenas querer isto ou aquilo. Também não significa apenas que nós somos o que desejamos. O que é mais problemático no desejo é que nunca desejamos sozinhos. Sempre orientamos nossos desejos como respostas a questões que não são exatamente interiores, pessoais. Desejamos isso ou aquilo como resposta a um constrangimento, a uma exigência que pesa sobre nós. Chama-se fantasia o cenário que criamos para nos proteger desse constrangimento que não se direciona a isto ou aquilo especificamente. A fantasia é o modo como legitimamos nossas posições para nós mesmos e para os outros. Esse constrangimento vem do lugar que ocupamos em nossas culturas ou comunidades, por isso dizem que ele é simbólico. O que a minha cultura ou comunidade espera de alguém que assume o lugar que ocupo? “O que eles querem de mim? O que eu sou para eles?”é o tipo de pergunta que nossas fantasias e nossos desejos ostensivamente tentam responder. Se a resposta parece clara em determinados contextos culturais (“obviamente, eles esperam que eu passe por um ritual de iniciação, arrume uma esposa, etc”), as coisas se complicam quando o próprio imperativo nos convida a não obedecê-lo e sermos céticos a cada resposta positiva que oferecermos para ele. A cada vez que desejamos algo verdadeiramente, a cada vez que sustentamos uma crença, aquilo soa como algo ridículo. Mas, vamos ser sinceros, não há algo de estúpido, violento, inocente ou arbitrário nas pessoas que realmente parecem acreditar naquilo que elas estão engajadas sem qualquer espécie de distanciamento? Essa postura não incomoda um olhar esclarecido? Ao mesmo tempo, sejam as pessoas que verdadeiramente se apaixonam por algo e se engajam nisso, sejam as pessoas que estão imersas em culturas tradicionais, todos eles não parecem, aos nossos olhos, abrir mão de um gozo ilimitado da vida que nos nossos dias é permitido?

Mas, esse gozo irrestrito que ostensivamente somos convidados a acessar ao contrário de ser vivido com plenitude é vivido com angústia e ansiedade. Basta pensarmos: por que em uma época onde tudo parece ser permitido as pessoas tomam tantos remédios para depressão, ansiedade e mal-estar de todos os tipos? O problema é que não vivemos esse “gozo” de outro modo senão como um imperativo. Na verdade, nos sentimos inadequados ou não inseridos na nossa realidade social o quanto mais não conseguimos oferecer signos de gozo. Somos constrangidos a procurar desesperadamente o que nós somos no mais íntimo do nosso ser, descobrir qual é o nosso verdadeiro desejo: é a mensagem de toda boa terapia de grupo ou de todo livro de autoajuda. Há uma estranha conversão do discurso revolucionário da década de 60 em um burguês individualista new age que faz yoga e tem um bom emprego como designer. Nada melhor do que isso para provarmos o quanto as velhas estratégias críticas fracassaram, sobretudo porque não perceberam o quanto o contexto no qual elas estão inseridas se modificou. A crítica deixou de conhecer o seu objeto e se tornou um ato vazio. Nessa lista de fracasso não estaria a política do desejo?

Assim como uma ética baseada na privação foi oportuna nos primeiros momentos do capitalismo, uma ética do excesso se encaixa perfeitamente com a nova ordem. Se antes, o lucro dependia de trabalho árduo e uma economia de penúria, para responder com mais eficácia à circulação de mercadorias, precisamos agora adotar estilos de vida mais liberais, mais abertos, mais pragmáticos. O caótico no capitalismo não seria apenas o desastre na produção, mas também no consumo. É possível pensar que o proletariado está mais no shopping do que na fábrica.

Dizem que é uma época a-moral, porque ultrapassamos o momento histórico em que a culpabilidade era a forma privilegiada de envolvimento do sujeito com o mundo social. Não se encaixa mais (a não ser revista) a ideia de que a repressão dos desejos é condição de sociabilidade. Mas o passo equivocado é acreditar que nos livramos dos maiores moralismos e mesmo das formas mais arcaicas de vida. Paradoxalmente, como uma paródia, a utopia de 68 foi realizada em nossa época sem que por isso exista qualquer espécie emancipação.

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